terça-feira, 19 de setembro de 2023

Sobre a normalidade irreal

 Texto Beta Costa que é meu ego autobiográfico

Dança Roberta Bonfim


Ela descobrirá a crise de ansiedade tardiamente, devem ter sido as crises de riso que afastaram para longe todos os medos do mundo que nela habitavam escondidos sem querer perder morada. Mas quando ela degustou o doce excêntrico do momento em que se toma as rédeas de sua vida de modo extremamente dolorido, e o que até ali chamava de solidão torna-se de algum modo, liberdade. Como se a repetição do desejado por fim lhe tomasse o corpo, a mente e o espírito e as culpas fossem aos poucos dissipando à medida que vai tomando consciência das realidades possíveis. Mas voltemos às crises de ansiedade que vieram após a queda da cadeira que lhe fraturou a coluna e a fizera ter profundo medo da morte, que um ano antes também a assustou com a retirada emergencial do apêndice. 


O fato é que com a ansiedade ela acabou descobrindo novos ritmos do seu coração e alguns não tão confortáveis como os que ela já estava de algum modo familiarizada. E vivência a sua primeira visita a uma cardiologista, mulher óbvio. Ela não colocaria um homem para cuidar do seu coração, já que na vida nunca tivera nenhuma grande referência masculina, que não os autores que gostava de ler. A médica lhe solicitou exames, de sangue, um mapa cardíaco e da pressão arterial, além de uma bela corrida na esteira para saber como anda este coração.


Fazer exames e constatar que tudo anda bem virou lugar de extremo prazer para ela que com isso ainda conseguiu aprender a lidar com sua própria ansiedade, no tempo da espera que se dilata. Como uma alma em cura a grosso modo tem que corpo reagindo, existem outros médicos e exames no caminho, mas quero bem falar sobre o mapa cardíaco.


Você sabe do que se trata um mapa cardíaco? A Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial (MAPA) é um exame que permite o registro indireto e intermitente da pressão arterial durante 24 horas, enquanto o paciente realiza suas atividades habituais e também durante o sono. Ela já tinha visto outras pessoas fazendo, mas era a sua primeira vez. E enquanto esperava para colocar o aparelho pensava no tempo, nas prioridades de cada fase e na espera por um mapa, em uma vida urgente por ser vivida. Observava as pessoas naquela salinha de tensão disfarçada em sorrisos gratuitos, ou apenas uma sutil cumplicidade. 


Na sala onde colocou o aparelhinho que lhe acompanharia pelas próximas 22 horas, obrigando-a a parar de 20 em 20 minutos, respirar e esperar até que a pressão fosse aferida. E ali colocando o aparelho ela perguntava tudo que vinha à cabeça, a fim de evitar a fadiga posterior. Sabia que quanto mais segurança tivesse do processo, mais tranquilo seriam essas horas. 


Saindo da clínica foi testar o efeito do THC na sua pressão arterial, e também do alongamento. Então foi buscar sua criança na escola e atravessar todo shopping para levá-la a uma festinha da coleguinha da escola. Viver no Ceará é saber-se olhando e ela ali desfilando linda com meu mapa despertou olhares e criatividade na construção das narrativas de pedaços que ela se esforçava para ouvir, e sorria segurando forte a mão de sua criança. Deixou a sua filha em sua primeira festa com a colegas. Não quis abrir mão deste momento e conhecia as complexidades que seguiam dele.


Enquanto a criança se divertia com os colegas descendo o escorrega, ou se fantasiando de dinossauro, ou ainda cantando os parabéns, ela, a mãe andava pelo shopping com seu corpo sendo mapeado. E, deu-se de presente duas calcinhas, uma cueca para dormir e um sutiã, para criança uma pantufa e para o tédio de quem detesta shopping amendoins cobertos com chocolate e a contagem do tempo, que em shopping passa em outro tempo, mas é ainda outro quando de 20 em 20 minutos um apito seguido de um aperto no braço te obriga a parar e entrar em estado de presença. Quando não consegue parar, com um castigo de adestramento a pressão no braço lhe parecia maior só de sacanagem. 


Então a rotina com paradas e o dormir com a máquina, mas logo ela já parecia adaptada, talvez só não mais pela impossibilidade de um bom banho. Na manhã seguinte a máquina já lhe parecia familiar e até o look já combinava com o estilo do aparelho mapeador do seu coração. Em algumas paradas ela refletia a respeito do tempo, em outras da respiração, e a risada sempre que lembrava da profissional que instalou nela o mapa, indicando vida normal. Se vida normal então já que a terapia virara papo de amigas com profundas complexidades particulares dela que mesmo sempre tendo sido, parece às vezes novata neste corpo que lhe pertence, com esta mente que lhe é nata e nesta vida que aparentemente é a sua, por mais que às vezes tudo lhe pareça de um filme não gravado além de sua mente. 


E a mente… A mente… A memória que lhe visita em todas as histórias e a que escreve ao existir, em letras, movimentos e pessoas. 

 



E antes de tirar o aparelho ela sentiu a necessidade latente de dançar de ativar este corpo e o convidar por uma máquina que pare e se reequilibre tal hora. É pedir que o corpo experimente junto com a consciência o parar no ato de mover-se. Ao se mover a máquina chega mesmo a deixar de existir, assim como o medo de morrer. Você já sentiu esse medo? Ela sim e vou dançar mais isso outro dia por aqui. hihihihihi



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